Entrevistas Não Há Tragédia Sem Comédia

DOIS DEDOS DE CONVERSA COM...

MÓNICA GOMES 

E - Pelo que pude perceber já estás a preparar um próximo espectáculo. Queres falar sobre isso ou ainda é cedo?

M - Sim, estou a preparar o espectáculo Não Há Tragédia sem Comédia: As desventuras do Amor, a partir de uma peça que escrevi intitulada AMAR e que é, obviamente, sobre o amor. Posso adiantar que é um espectáculo muito diferente do actual, é outra coisa. No fundo, eu tinha de abordar este tema. Deve ser algo que tenho a exorcizar (Ri). E contei com a ajuda da minha irmã, que para além de ser parte da Companhia é antropóloga e poetisa, Sílvia Raposo, que me ajudou com a investigação de alguns temas e escreveu também algumas passagens cómicas. Eu venho de Humanidades, pelo que o universo literário, as personagens clássicas, mitológicas, são a minha área. A minha irmã tem outra bagagem, por assim dizer, e a nível das religiões, sociedades, rituais, é a área dela, pelo que nos complementamos muito bem.

E - É um tema de peso?

M - Sim, é um tema de peso e as histórias são complicadas, colocarão certamente o dedo na ferida de muita gente, mas com muito bom humor e animação...

E - Vai causar controvérsia?

M - Não sei, mas julgo que não. É um espectáculo para maiores de 12 anos, mas creio que a partir dos 16 já será mais fácil chegar a outras dimensões do espectáculo, porque até lá julgo que ficará muito pela rama. A abordagem ao tema do amor/morte faz-se sem tabus e considero que é um espectáculo que parte muito das minhas experiências pessoais e das experiências de pessoas com as quais convivo ou convivi, que me ensinaram alguma coisa sobre a vida e, nomeadamente, sobre o amor. Quero só salientar que se trata de uma obra de ficção e que qualquer semelhança das histórias das personagens com a vida real, qualquer associação de nomes a pessoas reais é pura especulação. Trata-se de pessoas que não existem e de histórias que não são reais. Alegrem-se os entusiastas de que falei no início, pois terão muito por onde tentar estabelecer associações. É um espectáculo que vai misturar mundos, o mundo cristão com o grego e o romano; vai misturar épocas e práticas gerando uma possibilidade que me fascina que é a possibilidade de lá em cima, ou seja, no céu Deus e Zeus serem amigos ou viverem juntos. Trata-se de uma realidade que junta deuses a escritores, a pessoas comuns, que junta religiões, num espectáculo sobre o Amor e morte, que é também um manifesto à sobrevivência dos valores que considero essenciais para a vida tanto a dois, como em sociedade.

E - Muito obrigada Mónica. Foi um prazer conversar contigo.

M - Eu é que agradeço o interesse e a conversa agradável. Certamente alguns vão achar tudo o que disse um disparate, mas lá voltamos à Nini: o importante é dizer.



TRÊS DEDOS DE CONVERSA COM...

E - O título do espectáculo é Não Há Tragédia Sem Comédia. O que eu pergunto é: Afinal trata-se de uma comédia ou de uma tragédia?

M - O cómico está sempre presente na vida e acho que a grande tragédia deste espectáculo é que, ao contrário das tragédias que conhecemos, ninguém morre no final, já está tudo morto desde o inicio. (Ri-se.) Eu não gosto de dizer que o teatro que eu faço é isto ou aquilo, acho que nós podemos fazer muita coisa e não nos devemos limitar. Neste momento estou a fazer comédia, dizem... Alguém diz que faço isso, mas na verdade eu não acho que se trate de ser comédia ou não, é a forma como eu me expresso, como eu vejo as coisas. Às vezes escrevo coisas bastante tristes, é verdade, mas por algum motivo quando as levo para a cena, e já cheguei a levá-las com a intenção de se manterem trágicas, na prática as coisas mudam porque para mim ir para a cena é descobrir-me, é resolver algumas coisas. Eu resolvo conflitos interiores na cena, por incrível que pareça, através de mim e dos actores que representam e ao resolvê-los vou parar a outro lugar, eu e os actores, porque isto acontece espontaneamente nos ensaios e até nos palcos, daí que o espectáculo sofra alterações ao longo do tempo de digressão.

E - Que outro lugar é esse? Para tentarmos perceber-te...

M - Esse outro lugar de que falo é, muitas vezes, cómico, porque o trágico se resolveu nalgum momento, resolveu-se, ou seja, deixou de fazer sentido no momento em que há uma compreensão da situação ou do estado de espírito. O exemplo mais básico é: Se eu percebo que estou triste, eu não continuo triste, mas há também quem opte por ficar ainda mais triste por ter consciência de estar triste, é uma opção, mas de qualquer das formas o estado muda. É semelhante àqueles encontros em que um grupo de amigos se ri das desgraças do passado, mas na altura não teve graça nenhuma. Quando eu falo de coisas resolvidas nas minhas encenações eu uso normalmente o cómico, sou levada para lá porque é isso que eu faço, encaro de forma positiva as situações depois de resolvidas. Quando eu falo de coisas por resolver eu por norma uso o trágico, digo por norma porque acho que é uma questão de estarmos situados no momento. É uma decisão entre aquilo que tu até podes criticar, mas aceitas, o riso para mim acaba por ser mais uma forma de reflectires sobre o que está, de tomares consciência, e o trágico é a decisão por usar a voz, é aquilo que tu te recusas a aceitar, recusas essa existência. Eu recorro ao trágico quando estou a espernear, quando estou a gritar por dentro. Este espectáculo é para mim numa primeira fase uma análise da situação, um tomar de consciência, vamos todos rir porque finalmente percebemos, mas depois é vamos todos tomar uma posição e agir. O final deste espectáculo é isso mesmo.

E - Fala-nos um pouco sobre o final, então...

M - Deixa-me só dizer que para mim ir para a cena é uma brincadeira, uma brincadeira séria, mas é uma brincadeira, e quando estamos a brincar descobrimos coisas e eu descubro muitas coisas que, por mero acaso, são cómicas e tudo se transforma nesses momentos. Eu não começo a encenar nenhuma peça minha limitando-a desde o inicio a ser isto ou aquilo, a prova disso é este espectáculo - Não Há Tragédia Sem Comédia, cujo final é uma coisa que nem sei bem o que é, está ali entre o trágico e a performance, é outra coisa, que atribui um novo significado a tudo o que aconteceu antes.

E - Pelo que sei o espectáculo numa fase inicial não acaba assim... Porquê? Ou antes de onde surgiu a necessidade de acrescentar ou alterar?

M - Eu descobri essa necessidade dramática, de expressão, de uma expressão urgente já depois da estreia. Um dia estava num ensaio e imaginei aquele final, veio-me à cabeça. Não tinha nada a ver com o espectáculo, por isso tinha de arranjar uma forma de tornar aquilo parte do espectáculo. Não consegui, mas acabei a tornar o espectáculo parte daquilo. Eu não sabia qual seria a reacção do público que vai para ver uma "comédia" àquilo, achei que podiam não entender, não gostar. A verdade é que mesmo assim eu senti urgência em fazê-lo e fiz. Há sempre um momento neste espectáculo em que o público julga que o espectáculo acaba, porque se espera que acabe ali, que sendo um espectáculo de caricatura à partida, tenha de se ficar por ali e não acaba. O que eu tenho visto é que as pessoas aplaudem e se preparam para ir embora, mas depois percebem que ainda não é ali, que está a acontecer qualquer coisa e a euforia da caricatura transforma-se, é nesse momento que elas participam no espectáculo, ficam atentas, apanhadas de surpresa tomam um olhar pensativo e muitas choram. Os aplausos neste segundo final são mais fortes, são aplausos de quem diz "Eu também fui, sou ou serei essa pessoa aí em cima. Sinto ou já senti isso. Estou contigo." Nesse momento é o único momento em toda a peça em que eu sinto que tenho cada pessoa comigo, mas não é a tentar compreender-me, nem a criticar, nem a fazer ligações com o que viu ou sabe, mas a dizer-me "Eu sou igual. Eu estou aí.". É aí e não nos aplausos, que são uma convenção, que eu sinto que aquilo que faço vale a pena, esse é o verdadeiro diálogo entre o autor e o espectador, é aí que acontece a dádiva.

E - Há algum aspecto característico, recorrente no seu trabalho?

M - Como é fácil perceber e já o disse, trabalho muito com caricaturas, acho que a caricatura é uma arte mal compreendida, acusada muitas vezes de ser superficial. Muitas vezes o é, mas não podemos nem devemos rotular. Eu considero que a caricatura é sinónimo de liberdade, eu não quero ter de imitar a vida. Já dizia Óscar Wilde que a vida imita a arte mais do que a arte imita a vida e creio ser verdade. Eu não quero criar pessoas. Quando quiser tenho filhos e olho para eles, vejo como são tão reais, tão pessoas... As personagens que eu crio dão conta de um todo, são o particular que eu retirei desse todo. A caricatura é isso, é retirar o particular, o eterno do contingente, do geral. Eu acredito que o teatro é urgência e eu faço teatro porque sinto urgência em dizer coisas. A palavra já é limitadora por si só, quanto mais limitar a imaginação àquilo que nós, humanos, achamos que somos e digo achamos, porque nós nem sabemos o que somos ou podemos ser. Também é recorrente nos meus trabalhos os monólogos, que são textos sérios à partida, aos quais dou uma roupagem cómica. Essa é uma das vantagens de encenar os meus textos, é que eu descubro-os na encenação, às vezes faço com eles coisas que quando os escrevi nunca imaginei e descubro outras interpretações possíveis, às vezes mais interessantes e trabalho com elas.

E - Pode-se dizer que o teatro de revista está na base do seu trabalho?

M - Eu não vou certamente fazer sempre caricatura nos meus trabalhos, como não vou também deixar de a fazer. A caricatura é o levantamento dos aspectos mais relevantes e todo o criador/encenador já faz à partida uma selecção, dá uma direcção ao seu trabalho. Hoje, mais do que nunca, seleccionamos informação. Eu assumo que existe uma influência do teatro de revista no meu trabalho, que tem haver com essa tradição da caricatura, mas ao mesmo tempo eu afasto-me porque não considero nenhuma das minhas caricaturas desprovidas de densidade psicológica. A densidade existe e existe nelas próprias, não é no exterior, porque as personagens de revista também têm essa densidade, na minha opinião, ao contrário do que muitos defendem, mas nelas não está na personagem, sim no que a sua presença evoca. É uma densidade evocada pela personagem, mas que não existe no seu discurso, na parte física da coisa. No entanto, não deixa de estar lá, está lá porque o espectador a reconhece, a vai buscar à sua memória. É neste aspecto que eu creio que me afasto completamente, aliás, quando atribuo um papel a um actor, é feito um trabalho de perceber quem é aquela pessoa e o que a move, porque é que está ali e o actor tem também de fazer esse trabalho de perceber porque é que está ali, o que é que o move a estar ali, o que é que tem em comum com aquela personagem, gosta ou não gosta dela? Isso é importante, porque ele tem de descobrir a urgência no que está a fazer e isso não é algo que eu possa descobrir por ele, ele tem de descobrir por si próprio o lugar onde se encontra com a personagem e podem usar a mesma voz. É a luta interior do actor com a personagem que lhe dá energia e essa energia é para mim uma energia vital, uma urgência que torna a personagem presença, carne.

E - Obrigada.

M - É sempre um prazer e um gosto falar contigo.


 
SÍLVIA RAPOSO

E- Pelo que a Mónica referiu Não Há Tragédia Sem Comédia: as desventuras do amor é uma peça que fala sobre amor e religiões, o que é que nos podes dizer em relação a este novo projecto? 

S- Sim, é uma peça que aborda um tema que nos toca a todos, o amor, e é certo que fá-lo de um modo bastante sério. Depois fala de religião, sendo que falar de religião e posicionarmos nesse universo é sempre um terreno politicamente armadilhado. Num momento em que se fala tanto em intolerância religiosa e conflitos culturais, quase incorrendo cair em velhas profecias (ri), se calhar parece perigoso fazermos uma abordagem cómica ao tema das religiões. Mas esta peça é isso mesmo, é uma espécie de grito de liberdade. Isto sem, contudo, incorrer no risco de servir de arma de arremesso à tolerância e respeito para com a diferença.

E- Que mensagem procuram transmitir com esta peça, sei que costumam ter por base os temas sociais...
S- O nosso intuito foi trazer o quotidiano para estas personagens, de ir buscar a sinceridade dos testemunhos reais, e demonstrar como é possível encontrar a semelhança na diferença. Aborda-se a mitologia greco-romana, mas sem deixar de passar pelo catolicismo e piscar disfarçadamente o olho às religiões tradicionais africanas. A peça não é propriamente aquilo a que os ingleses chamam de melting pot, mas antes o reconhecimento e aceitação da diferença, ainda para mais numa época em que se vive num incessável fluxo de culturas, numa diversidade de crenças.
E é claro que a este nível a nossa principal meta foi tentar ter o olhar filigrânico, olhar para a realidade para além da máscara que se lhe cola à face, de modo a que não ficássemos no limiar da essencialização de culturas. Assim quisemos trazer o quotidiano para o palco, as situações mais comuns, daí a importância fulcral de que cada personagem apresente a sua história, que posso avançar serem histórias muito particulares e distintas entre si.

E- Sei que a peça não se limita apenas à língua portuguesa, poderias explicar o motivo dessa opção...

S- Houve várias pessoas que nos questionaram acerca da questão da língua, porque esta é uma peça com uma grande riqueza a nível de dialectos. E uma das questões que mais nos foi colocada foi porque é que a peça não era dita integralmente em português. Então o absurdo da situação é que a maioria das vezes se toma a parte pelo todo, ou seja, deixa-se de lado o alentejano, o nortenho e outros dialectos que são tão portugueses quanto o Lisboeta. Quisemos também incluir vários dialectos, até porque a peça desenrola-se no limbo, pelo que ali estão pessoas de todos os lugares. Por este motivo nós procurámos brincar com isso ao longo da peça. É uma tentativa de, como refere uma das personagens, "derrubar o muro da língua", e quebrar a barreira invisível através da qual nos procuram separar. Portanto, essencialmente, é esse o verdadeiro espírito da peça.